Impacto do luto na prática médica
Cuidar de pacientes gravemente doentes e em fase terminal pode produzir reações de luto nos profissionais de saúde. No contexto da oncologia, a atuação desses profissionais implica lidar com as repercussões do câncer ameaçando vidas e sofrer as intercorrências da doença em situações extremas, numa realidade diária em que são forçados a lutar contra a morte inevitável e as perdas que ocorrem em seu ambiente de trabalho. Enquanto todos os profissionais podem potencialmente ficar de luto pela perda de um paciente, a experiência de luto dos oncologistas tem elementos únicos relacionados ao senso de responsabilidade que eles têm pela vida dos pacientes.
Estar ao lado do ser humano no momento de morte nos coloca diante de nossas angústias existenciais, das quais estamos constantemente nos esquivando para nos proteger. O contato íntimo com a doença, a dor, o sofrimento e a morte são fatores estressantes inerentes ao trabalho assistencial em saúde, que permeiam a formação e o exercício profissional, em especial, de médicos. Deparar-se diariamente com esses denunciadores da fragilidade humana é uma atividade desgastante em si, por exigir uma revisão constante de suas reações emocionais ao se confrontar com as experiências pessoais de perdas.
Um dos aspectos mais dolorosos na oncologia é aprender a aceitar a morte de um paciente terminal e lidar com ela. Ao mesmo tempo, essa experiência pode se tornar uma satisfação pessoal devido ao conforto que se pode proporcionar e à recompensa profissional, por meio da tentativa de amenizar o sofrimento do paciente e sua família, contri- buindo para a morte com dignidade. É uma experiência que pode proporcionar uma oportunidade única para que a relação entre médico, paciente, equipe e família seja aprimorada, pois ela os aproximará na essência do cuidar, conduzindo o profissional para a individualização da assistência prestada.
Os profissionais frequentemente oferecem apoio aos pacientes e familiares, contudo não têm tempo e nem um espaço para vivenciar seu próprio pesar pelo sofrimento e morte de seus pacientes. Sempre há um próximo paciente, com necessidades que precisam de atendimento imediato, e o médico deixa de lado suas emoções e sentimentos para poder atendê-lo. O luto acumulado e não elaborado pode, ao longo do tempo, transbordar e interferir na capacidade de compaixão e investimento emocional dos profissionais.
A natureza do trabalho que os oncologistas desempenham é estressante pelas inúmeras situações que colocam a vida em risco, pelas perdas e mortes, o que por si só provocam tensão e desafiam a capacidade do profissional enfrentar esses acontecimentos mantendo o equilíbrio emocional de modo eficaz. Em níveis extremos, podem conduzir à exaustão emocional, à despersonalização e à redução da realização profissional, que são características da Síndrome do Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional, que é um risco ocupacional para os médicos em geral e para os oncologistas em particular.
Tem sido crescente o número de publicações nacionais e internacionais descrevendo as altas prevalências da Síndrome do Burnout entre os médicos oncologistas, cujas taxas são de aproximadamente 56%, mensuradas por meio do Malash Burnout Inventory (MBI). Mesmo diante da evidência de que mortes e perdas são aspectos intrínsecos à prática dos oncologistas e que o luto é uma reação comum de ocorrer, pouco se conhece sobre a natureza, a extensão e o impacto que a perda do paciente causa a esses profissionais. É importante ressaltar que estresse e burnout não devem ser confundidos com luto. Luto é um fenômeno emocional complexo que ocorre após a perda de uma pessoa significativa. É um processo que varia de pessoa para pessoa, de momento para momento, e abrange múltiplas facetas do ser enlutado.
Para conhecer melhor a magnitude dessa experiência, Granek et al. realizaram uma pesquisa qualitativa com o objetivo de explorar o luto de oncologistas frente a perda de um paciente e o impacto causado em sua vida pessoal e profissional. Participaram desse estudo vinte oncologistas selecionados de três centros de oncologia para adultos de Ontário, Canadá. Os entrevistados pertenciam a três grupos de oncologistas que se encontravam em diferentes estágios de suas carreiras e variavam em relação ao sexo, etnia e subespecialidade. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os participantes, entre Novembro de 2010 e Julho de 2011, sendo elas gravadas e posteriormente transcritas. A análise envolveu classificar linha por linha e foram introduzidos códigos às categorias emergentes das narrativas dos participantes.
O resultado mais recorrente entre os oncologistas entrevistados (85%) foi a descrição da “compartimentalização” que emerge da perda do paciente. A compartimentalização envolve a capacidade do oncologista para separar seus sentimentos de pesar pela perda do paciente de outros aspectos de suas vidas. Os participantes usaram expressões como “negação” e “dissociação” para descreverem esse processo diante da morte do paciente. Esse mecanismo é frequentemente descrito como sendo uma estratégia de enfrentamento utilizada para lidar com o impacto causado pelas perdas sucessivas de pacientes. Os pesquisadores discutem que há alguns aspectos positivos que surgem desta experiência, incluindo a percepção de melhor perspectiva de vida resultante da frequente exposição à perda do paciente. Entretanto, descrevem diversos efeitos negativos relacionados ao impacto que a perda de um paciente gera aos oncologistas, associados às decisões dos tratamentos, ao nível de distração adotada em relação aos pacientes e em sua motivação para melhorar o cuidado para os outros pacientes. Dentre os participantes, 50% referiram que se distanciam dos pacientes e de seus familiares quando estão próximos da morte. Isto inclui visitar menos os pacientes no hospital, menos tempo de permanência ao lado do leito e menor investimento de energia para o paciente que está morrendo.
Os pesquisadores comentam que a perda do paciente demonstra causar um impacto pessoal nos oncologistas, que descreveram seu luto como semelhante à fumaça, por ser invisível e inatingível. Concluem ainda que as reações ao luto relatadas pelos participantes sugerem que eles falham para manejar apropriadamente o luto pela perda do paciente, e que isso pode afetar negativamente não somente eles próprios, como também os pacientes e os seus familiares.
Os autores do estudo e outros pesquisadores envolvidos em estudar a morte e o luto recomendam que uma das estratégias para aliviar esses efeitos negativos nos oncologistas seria implantar programas educativos visando reconhecer e trabalhar o processo de luto. Ressaltam que esses programas devem abranger medidas preventivas do burnout, com início na formação acadêmica e mantido como rotina ao longo de sua carreira profissional, e sugerem ainda a implantação de grupos de reflexão para que os profissionais compartilhem experiências e reflitam sobre as estratégias que favorecem o autocuidado.
Elizabeth Nunes de Barros
Psico-oncologista, coordenadora do Setor de Psicologia do Centro de Combate ao Câncer.
Referências:
- Nature and impact of grief over patient loss on oncologists personal and professional lives. Granek L, Tozer R, Mazzotta P, et al. [publish online May 21, 2012]. Arch
- Intern Med. doi: 10.1001/archinternmed.2012.1426.
- Untaming grief for palliative care pshysician . Moon PJ. Am J Hosp Palliat Care.2011;28(8):569-572.
- Prevalence of the burnout syndrome among Brazilian medical oncologists. Glasberg J, Horiuti L, Novais MA, et al. Rev Assoc Med Bras 2007; 53(1):85-9.
- Humanização das relações assistenciais: a formação do profissional de saúde. Nogueira- Martins MCF. São Paulo: Casa do Psicólogo, 3a ed.,2004.